11.11.04

Toda A Mente É Danada (3)

Vi-o avançar para mim com um revólver na mão e tentar abrir a porta do carro. Bati-lhe com ela e ele caiu ao solo, largando a arma que trazia. Antes que ele esboçasse qualquer gesto saquei a minha automática e disparei.

A bala da Luger de 1943 atingiu o digníssimo ASCJIM na cabeça e atirou-o para trás. Vincent Greenaway sentiu-se confuso e ficou a olhar para a mão gorda que segurava a arma. Onde estava Elder Pramitt?

Elder Pramitt olhou para si, mesmo à sua frente, e depois olhou para a moderna automática que tinha na mão. Não gostou do que viu, nem dos anéis que ornavam os dedos, nem da arma que segurava. Os anéis podiam esperar, mas a arma não! Esboçou o gesto de a atirar para longe.

Wilbur Teeling viu-se no chão, sob a mira de uma automática, e um medo de morte tomou conta dele. Não notou o doce odor dos pinheiros quando esticou o braço para apanhar a arma que estava ao seu lado no asfalto.

Disparou sem olhar, o medo ocupando todo o seu ser e tomando conta dos seus movimentos. O corpo inerte de Walter Scherer estremeceu quando o projéctil o atingiu.
- Mister Teeling, você matou-o!! Você matou o ASCJIM!
Martin não entendera o motivo, mas vira claramente o seu patrão alvejar o Administrador por duas vezes. Disso não tinha dúvidas!
- O que foi que eu fiz, Martin?! – os guarda-costas de Walter Scherer manietaram rapidamente um Wilbur Teeling confuso, sem saber bem o que acontecera. Wilbur deixou-se levar pacificamente, não tirando os olhos do corpo ensanguentado de Walter Scherer. Teria sido tão bom se ele tivesse comprado a arma...

Ele disparara sobre uma pessoa, mas essa pessoa não era Elder Pramitt. Elder estava na sua frente e apontava-lhe uma arma. A sua não a tinha e não fazia ideia do que lhe havia acontecido.
- Ouça, desconhecido! Você vai contar-me tudo, e vai contar-me agora! Não sei lá muito bem como a nossa situação se inverteu, mas isso não me interessa. Porque anda a seguir-me? Quem é você?
Achou melhor contar-lhe a verdade, obedecer-lhe em tudo. Pelo menos enquanto tivesse uma arma apontada.
- Chamo-me Vincent Greenaway, sou sargento do corpo de polícia e tinha como missão vigiá-lo. Não sei porque motivo, nem tinha de saber. Pode explicar-me agora como é que a minha pistola desapareceu?
- Fui eu que a atirei para o mato.
- Você?!
- Sim, quando estive no seu corpo.

Seria mesmo polícia ou estaria a mentir-me? Resolvi acreditar nele de momento. Expliquei-lhe o que me acontecera já por várias vezes.
- Já me aconteceu o mesmo, mas não foi a si que eu fui parar. Foi numa das transferências que descobriu que eu o seguia?
- Sim, na segunda. O que me intriga é que desta vez consegui controlar os seus movimentos!
- Não sentiu ninguém mais, não foi? Apenas você no corpo de outra pessoa.
- Partindo da premissa de que não estamos os dois loucos, o que terá provocado tudo isto?
Greenaway sentou-se numa rocha.
- Não faço ideia, mas tenho a certeza de que disparei sobre alguém com a mão de outra pessoa. Acertei-lhe na cabeça...
- A mesma pessoa que apanhou a minha arma? Seria essa pessoa que eu vi no meu corpo? – Greenaway encolheu os ombros.
- Posso procurar a minha arma, isto é, se você me disser para onde a atirou?
- Procure atrás desse arbusto. – falei mais alto quando ele se afastou – Teve tempo de ver onde estava?
- Era uma espécie de armeiro, um armeiro de luxo. Havia muitas armas de diversas épocas em mostruários de veludo. Encontrei-a! Vamos embora daqui, Pramitt?
- Vamos no meu carro, o seu não consegue sair daqui sozinho. Já é o segundo em poucos dias, ehm?
- Ele era gordo...
- Como?!
- Estou a dizer que ele era gordo, muito gordo. E usava uma peruca empoada.
- E provavelmente a esta hora está preso. – o Plymouth arrancou com suavidade.
- Provavelmente a esta hora está morto...
Olhei para ele sem perceber.
- Esta semana existe pena de morte para homicídios...
Não lhe disse nada e fixei o meu interesse na estrada. Durante todo aquele tempo não passara ninguém.

O café estava bem forte, como Phoebe o gostava de fazer. Vincent olhava taciturno para a imagem holográfica da televisão e eu olhava para Phoebe, sem saber o que fazer ou dizer.
Alguém nos usara para cometer um homicídio, um crime cometido um pouco por cada um de nós sem o sabermos. Eu e Vincent reconstituíramos toda a sequência ao longo das transferências através do que cada um de nós vira e fizera. Mas como fora tudo aquilo possível, quem era suficientemente poderoso para manipular as mentes dos outros?
- Mais café, Elder?
- Obrigado Phoebe. – estendi-lhe a minha caneca – E tu, Vincent?
Vincent não me ouviu, tinha o olhar fixo na imagem da holo-TV e tentava aumentar o volume do som com o comando.
"-...A execução seguiu o rito usado na França do século XVII. O instrumento que vêem agora tem o curioso nome de guilhotina e é verdadeiramente eficaz." – a imagem mostrou a execução. Seria difícil juntarmos novamente a cabeça do desgraçado ao corpo e arrancar-lhe a sua parte da história.
- Era ele?
Vincent Greenaway confirmou com a cabeça.
- A menos que hoje tenham executado dois sujeitos gordos...
- Não ouvi o princípio da notícia.
- Estava noutro canal; vou requerer a repetição ao serviço noticioso. – Phoebe tirou o comando a Vincent e digitou a sequência adequada. As letras pairaram no ar: a partir do momento em que aceite esta transmissão, ela ser-lhe-á cobrada à taxa de 5 W$ cada 10 segundos. Indique o modo de cobrança.
Depois de Phoebe dar a indicação à máquina a notícia foi repetida:
- "O cidadão Wilbur Teeling, comerciante de armas antigas, foi hoje executado pelo assassínio do digno Administrador do Sistema Computacional de Justiça e Imposições Morais, Walter Scherer. O homicídio foi cometido no estabelecimento de Mr. Teeling, que recebera a honra de ser visitado pelo ASCJIM, conhecido coleccionador de armas. Não se conhecem os motivos pelos quais Mr. Teeling cometeu tal acto, mas o crime foi dado como provado e o acusado foi executado, pois a pena de morte para tais crimes está em vigor durante esta semana. A execução seguiu o rito usado..." – Phoebe desactivou o aparelho, aquele pedaço já o conhecíamos.

9.11.04

Toda A Mente É Danada (2)

Tinha resolvido tudo. O automóvel fora rebocado, ele arranjara outro transporte e podia começar com a sua vigília. Só não compreendia o que lhe tinha acontecido depois do despiste. Consequências do desastre? Não sabia porquê, mas a explicação não o satisfazia completamente. E aquele gosto a comida chinesa que teimava em persistir-lhe na boca? Ele detestava comida chinesa.
Estacionou o carro em frente de uma mansão que parecia antiga: uma réplica de um estilo inglês qualquer, não se recordava do nome. Ali, do lado oposto da rua, via bem a casa seguinte, de linhas modernistas, início do século XX provavelmente. Era lá que ele vivia.
Sentou-se melhor no banco e esperou pelos acontecimentos.

- Phoebe, acho que vou trabalhar...
- Para variar.
- Sim, porque passar a vida sem fazer nada acaba por se transformar num tédio inultrapassável.
Fui vestir-me. Não sabia o que vestir hoje, estava numa indecisão atroz.
- Porque não levas o teu uniforme de executivo de 1987, querido? – Phoebe salvava-me sempre.
Será que o vizinho comprou um carro novo, ou aquele automóvel cinzento estaria estacionado perto da sua casa apenas por acaso? Não devia ser dele, era demasiado vulgar para os seus gostos.
Liguei o rádio num posto que mimetizava as antigas estações americanas de FM e tomei um composto estimulante, um vulgar agitador. Podia tomá-lo com confiança, era um dos produtos que a minha empresa elaborava. Se melhorássemos o gosto, talvez...

A sensação de movimento revelou-se verdadeira quando ele abriu os olhos e acordou completamente. Teria sido a música do rádio que o acordara? E a sua cama quente, para onde fora? Acontecera novamente, aquele sonho (seria?) tão real! Não era o seu carro, aquele era de uma época anterior à daquele que possuía. Conseguiu ver-se quando olhou para o retrovisor interior. Aquele não era ele!

O volante alterou as suas dimensões num súbito ímpeto, como se se libertasse das leis da física que o aprisionavam na sua para sempre imutável forma.
Reconheceu quase imediatamente o automóvel que seguia à sua frente: era o seu! Que raio de coisa lhe estaria a acontecer? Estava louco de vez, ou teria sido o agitador que lhe provocara uma alucinação? Quando parou atrás do seu carro num sinal vermelho ouviu distintamente a música de uma certa estação FM. Para alucinação era bem sofisticada... O bigode que viu reflectido no pára-brisa já ele o conhecia de um certo lugar. Um lugar onde nunca estivera.

Sentia-se cair, sem qualquer ponto de apoio, volteando num negrume total sem fundo nem cimo ou qualquer outra orientação. Quase enlouqueceu no primeiro segundo.
A primeira coisa que o tirou do nada foi um som compassado, grave, que não identificava. Teria morrido? Aquele fabricante de drogas baratas tê-lo-ia assassinado? Talvez uma bomba no carro!
O som quebrou-lhe o raciocínio e ocupou-lhe a existência. Sentiu-se mexer; o colchão rangeu e as trevas desvaneceram-se quando se abriram os olhos daquele desconhecido gordo. Insuportavelmente gordo...

Tentei desligar com a mão direita um despertador inexistente e obtive como resposta um coro de buzinas. Estava novamente no automóvel que me tinham cedido para a minha missão e o sinal caíra novamente para o verde. Ele seguia algumas dezenas de metros lá à frente, no seu qualquer-coisa de luxo. Estaria a ficar louco?

Lá estava ele atrás, no carro vulgar, vigiando-me os movimentos. Não fora uma alucinação o que sentira, embora não fizesse qualquer ideia sobre a natureza daquele estranho fenómeno de... transferência? Sim, era isso! Transferência era o termo mais aproximado para designar o que me acontecera. Agora poderia proteger-me, embora não soubesse com que intenção ele me seguia. Neste mundo tudo me parece possível, mesmo o que é improvável.

Para Wilbur Teeling fora um despertar tormentoso, com aquele sonho que tão bom fora da primeira vez e tão estranho se tornara na sua segunda ocorrência.
Levantou com dificuldade os seus muitos quilos da cama e foi lavar-se. Com a folga do empregado teria de ser ele a tomar conta da sua loja de armas antigas. A melhor loja da região, pensou com orgulho.
Miss Jeavers já tinha o seu pequeno almoço na mesa quando ele desceu. Era incapaz de se dominar no que respeitava à comida. A fome reaparecia-lhe sempre, como um guerrilheiro emboscado, nos instantes em que ele se sentia mais indefeso. Já tentara tudo, até capitular perante a sua gula.
A sua casa era uma imitação perfeita de uma estalagem do século XVII, excepto nos interiores, claro. A loja era lá, também, o que lhe resolvera um problema delicado de locomoção. A única ligação aos seus aposentos particulares era uma porta, suficientemente larga para ele passar mas demasiado estreita para que os abelhudos se intrometessem na sua vida privada.
Abriu um armário antigo, envidraçado, e tirou a última peça que adquirira: uma réplica formidável, perfeitamente funcional, de uma Luger alemã do ano de 1943! Esse modelo fora utilizado pelo exército desse país numa longínqua guerra, mais ou menos por essa altura. Se tudo corresse bem, daí a uns dias passaria para as mãos do digníssimo Administrador do Sistema Computacional de Justiça e Imposições Morais. Walter Scherer era mais conhecido por ASCJIM, as iniciais do cargo que desempenhava.
Sim, se tudo corresse como esperava, Walter Scherer pagar-lhe-ia muito bem por aquela pistola.

Era a terceira vez que espreitava pelas janelas do meu escritório. De todas as vezes que olhei vi o carro cinzento estacionado do outro lado da rua.
Por mais que tentasse, apenas possibilidades absurdas me vinham à cabeça: Phoebe queria divorciar-se de mim e para isso contratara um detective para me vigiar e apanhar em falta (esta hipótese logo a coloquei de parte, Phoebe não era dessas e o ciúme não estava na moda); o homem era um polícia que tentava apanhar-me com alguma coisa menos clara na minha vida ou nos meus negócios (o negócio mais escuro da minha vida resumia-se à fabricação e comercialização dumas pílulas inofensivas, receitadas pelos médicos a hipocondríacos militantes e que eram negras como uma noite sem lua); o tipo era um assassino contratado pela concorrência para me eliminar (será que os métodos dos gangsters do século XX estavam na moda?). Esta era a que mais plausível me parecia, um concorrente invejoso tentando um atalho para o sucesso.
Olhei uma quarta vez: ele continuava lá, não lhe via o bigode, mas a sua silhueta era visível no interior do automóvel cinzento.
- Sarah, avise a minha esposa de que não vou almoçar a casa.


Tinha tudo preparado: a loja reluzia e todas as armas haviam sido limpas com esmero. Ele já não devia demorar.
Aquela visita era o culminar da sua carreira e o ponto mais alto no prestígio da sua loja.
- Miss Jeavers, você só vem à loja se for chamada. Martin, quero-o impecável! Você é que abrirá a porta. Ainda sabe o que deve fazer ou já se esqueceu de tudo?
Maldita peruca que teimava em descair para o lado.

Nos últimos dias, apesar da ansiedade que me provocava a sombra no carro cinzento, não tivera mais nenhuma experiência bizarra. Aquela estranha transferência não voltara a suceder, mas o estranho que me vigiava colocara-me os nervos em franja. Tinha de fazer qualquer coisa ou ficaria louco de tanto olhar por cima do ombro.
Escolhi o início da tarde para agir. Uma estranha ansiedade apoderou-se de mim e tornou tudo urgente. Saí do escritório com uma desculpa qualquer e dirigi-me no meu automóvel para uma estrada que sabia quase deserta. A sombra cinzenta seguia-me. Seria a última vez.

O que irá fazer este louco para uma estrada nas montanhas a estas horas? Que assunto poderá ter aí um fabricante de pílulas sortidas, que ganha a vida utilizando as fraquezas dos outros?
O maldito conduzia depressa! Teria de esforçar ao máximo o meu automóvel para não o perder.
Foi depois de uma curva cega que ele apareceu próximo demais. Foi inútil tentar travar, o carro dele forçou-me a ir para a valeta e a imobilizar-me. Fiquei tonto com o choque e não me mexi com a celeridade que devia.

Às 15:30 em ponto, Walter Scherer apareceu na minha loja. Deixou os guarda-costas lá fora e entrou descontraído, cumprimentando-me cordialmente.
- Como está, Mister Teeling?
- Sempre bem, Mister Scherer. Podemos ir direitos ao assunto que o traz aqui?
Ele acedeu com um ligeiro movimento da cabeça.
Walter Scherer era um homem prático, que não ligava a roupas ou a carros ou a qualquer moda. Tinha apenas uma paixão, as réplicas de armas antigas. Ainda bem.
Tirei a arma do estojo e exibi-lha.
- Está carregada?
- Sim, Mister Scherer. É um perigo relativo, mas todas as armas expostas estão carregadas e completamente funcionais. As balas são reais, também.
Ele ia comprá-la, via-lhe nos olhos o interesse! Eu não podia desejar melhor publicidade para a minha loja.

2.11.04

Toda A Mente É Danada (1)

Não me sentia bem. Disse-o alto, para Phoebe ouvir:
- Não me sinto bem!
- Não tenho interesse nenhum no teu estado. Se não me tivesses abandonado ontem à noite e trocado por várias garrafas de gin e pela companhia dos teus amigos, talvez não te sentisses tão mal.
- Não foi gin...
Ainda estava aborrecida. Levantei-me a custo do sofá onde estivera enfiado (anos 50 do século XX, acho eu), e dirigi-me à casa de banho. Não me sentia nada bem.

Os dourados das torneiras do lavatório não tinham sido poupados pela enésima descarga do meu estômago revoltado. Phoebe zangar-se-ia mais quando visse a casa de banho assim. Nunca mais beberia...? O que foi que bebera, afinal? Não tinha sido gin, mas não me recordava qual a bebida que me colocara naquele estado.
Maldita ressaca.
- Tinha de ser! Não podia faltar a inundação de vomitado na minha casa de banho!
- Acho que é minha também. Afinal foi tudo pago... pelos dois. – o meu estômago pregou-me a sua última partida, bem em cima dos sapatos de Phoebe.
Não é agradável ser esbofeteado depois de se ter estado a vomitar, mas ela não me deu tempo para reagir. Voltou-me as costas e saiu da casa de banho, deixando marcas húmidas na alcatifa da sala. O que foi que bebera, afinal?


Há lugares improváveis. Existem coisas impossíveis. Depois vem a realidade que desmente tudo isto.
O nosso mundo não fazia qualquer sentido, mas existia. Era uma colagem improvável de épocas antagónicas, tudo ligado pelos ténues fios de seda da insanidade. Nada precisava de ter nexo, bastava que existisse ou fosse imaginado pela mente de alguém para logo passar a fazer parte da realidade. Não estou a dizer que não sou louco: também tenho um Plymouth de 1956, um corte de cabelo de 2011 e preconceitos do longínquo ano de 1833. Isto além da minha casa, réplica de uma construção de um qualquer arquitecto famoso do início do século XX, entalada entre uma mansão de estilo Tudor e uma típica casa de montanha dos Alpes suíços. Não faz sentido, pois não?
Sempre que me embebedo fico com tendência para filosofar. Fui procurar Phoebe depois de me lavar, usando apenas um roupão de seda com motivos estranhamente estúpidos.
Estava no quarto, estirada na cama do século XVIII, fingindo que chorava. Phoebe nunca chorava.
- Nunca mais bebo nada, nem sequer água. Hás-de ver-me definhar, Phoebe, e nada do que então tentares me demoverá. Mas podes salvar-me do meu trágico destino agora, se me deres um beijo.
Phoebe nunca fazia nada. Só fingia.

Greenaway olhou novamente para o espelho retrovisor. Sim, era mesmo uma pequena mancha de ferrugem! Teria de levar o carro ao restaurador o quanto antes. Custara-lhe caro aquele modelo, não podia deixar que a ferrugem o tomasse de assalto.
As manhãs eram sempre dolorosas. Um dia, quando uma curva surgisse, ele estaria de olhos fechados, no país dos sonhos, e essa curva seria a última.
Ser polícia num mundo de loucos tinha vantagens e desvantagens. O principal obstáculo era a lei: mudava ao sabor da moda e, se três meses antes, durante uma semana, vigorara a lei islâmica do fim do século XX (felizmente estava de férias nessa altura), e no mês anterior existira um avançado e liberal sistema de leis da antiga colónia de Kihyl, o normal era a miscigenação de várias épocas e sistemas, numa barafunda tal que só com o auxílio do sistema central de aplicação da justiça se conseguia aplicar a lei.
Quando era garoto sempre gostara de subir às árvores. Partira vários ossos nessas brincadeiras mas voltara sempre a tentar. Àquela árvore que surgira à minha frente não me apetecia trepar, principalmente dentro do meu automóvel.
O som da chapa rasgada pela árvore e a ausência de impacto fez-me perceber duas coisas naqueles ténues instantes: tinha escapado a um choque frontal com uma árvore de respeito e o meu carro sofrera bastante com tudo aquilo. Após um slalom atrapalhado pela ribanceira abaixo o automóvel estacou, mergulhado numa nuvem de poeira. Tinha de passar a deitar-me mais cedo.

Sentiu a ausência e abriu os olhos. Phoebe já não estava ao seu lado. Levantou-se a custo e olhou para o relógio suíço na parede: era tarde. Ela entrou nesse momento, nua, ainda com gotas a pingarem da pele dourada.
- Sabes de uma coisa engraçada...
"-... esta é do século XXI, ano de 2036, e subiu ao Top10 mundial no dia dez de Agosto desse ano. "Take a little" pelos..."
Olhou para a mão ensanguentada e percebeu que fizera um corte na testa. Mão ensanguentada!? Que raio...
Viu o corte no espelho interior: nada importante, o automóvel preocupava-o mais. Isso e o atraso. O sujeito que tinha de vigiar não estaria à sua espera. Vigiar? Mas eu não tenho de vigiar ninguém! Vi a minha mão abrir a porta e saí do carro. Olhando para cima agora, a ribanceira não lhe parecia tão imponente. Um momento! Desde quando é que tenho um anel com uma pedra amarela? Decidiu-se a subir e procurar ajuda. E fatos cinzentos com corte do fim do século XX? A meio da escalada limpou o suor da testa e do bigode. Eu não tenho bigode! Custara-lhe menos a descer...

Wilbur Teeling não ligou aos gritos de protesto do peão imprudente e continuou a acelerar pela avenida.
A cabeleira empoada descaiu-lhe novamente para o lado e tombou no chão.
- Merda de coisa! – abrandou e encostou o automóvel à berma. Custou-lhe dobrar-se para a apanhar, os seus 110 quilos não ajudavam.
Droga de acidente! Pelo menos não me magoara, embora me sentisse apertado. Levantei-me e olhei pelo pára-brisa. Onde é que estava a floresta? Ajeitou a cabeleira com cuidado e engatou novamente a primeira. Estava com fome, comera muito pouco uma hora antes. Eu não estou com fome! Parou junto a um restaurante chinês. Tinha mesmo muita fome.

Ela era muito bonita, a mulher mais bonita que eu já vira! Para mais estava nua e avançava na minha direcção. Ouvi-me dizer:
-...Não me lembro do que bebi ontem. Foi qualquer coisa nova que alguém trouxe mas não me recordo o quê! – eu ontem bebi sumo de laranja, recordo-me bem.
- Não foi sumo de laranja concerteza, foi algo bem forte para te pôr nesse estado. Serás sempre o mesmo, Elder Pramitt...
Esta dor de cabeça não é minha, raios! Eu ontem não bebi nada! Pramitt enlaçou Phoebe pela cintura e sussurrou-lhe ao ouvido: – Tu gostas de mim assim. – para dizer a verdade não percebo como ela gosta de mim, mas está a ser muito bom. Até me sinto mais leve!

Elder Pramitt não percebia porque estava novamente na cama com Phoebe.
Vincent Greenaway não se lembrava de ter subido a ribanceira.
Wilbur Teeling estava num restaurante chinês. Não percebeu como, mas a comida estava boa.